domingo

Além do que os olhos podem ver


Você consegue ver? 


Eu tinha 14 anos no meu primeiro emprego, trabalhava de Office-boy em uma papelaria, fazia entregas aos clientes durante a semana, inclusive aos sábados, atendia no balcão, entregava correspondência todo dia cedinho no escritório central e fazia também serviços bancários. Ia do serviço direto para escola, me divertia muito nos dois, mas ficava ansioso pelo domingo, quando revia os amigos e tinha muitas histórias para contar.

Durante a semana havia um amigo na escola que era cheio de histórias, a família dele era bem humilde, como a minha, mas ele não trabalhava ainda. Ele já tinha 18 anos, entrara tarde na vida escolar, o que para mim era incompreensível, afinal ele era muito inteligente, fazia contas mais rápido do que eu manipulava minha calculadora, jogava xadrez como um mestre, era um escritor fabuloso e só tirava notas máximas. Eu me perguntava o porquê dele ainda estar no 3º ano do ensino médio.

Um dia eu pensei tanto nisso que não aguentei. Falei, Zé preciso te perguntar uma coisa, sempre penso nisso, mas nunca perguntei, aliás, duas, me diga por que você entrou tarde na escola e porque você não trabalha, já que diz que sua família passa por algumas necessidades?



O Zé olhou para mim com espanto, você não sabe mesmo? Claro que não, por acaso já me viu perguntar algo que já sei? Ele me olhou com espanto novamente e deu um pequeno sorriso, balançando a cabeça de um lado para o outro e disse. Joakim, você é muito ingênuo mesmo, pensei que isso estava na cara. Como na cara Zé? Você é o cara mais inteligente que conheço e um verdadeiro professor perto de nós, suas notas são sempre máximas, fala muito bem, podia ter um emprego desses que pagam bem, ensinar xadrez, inglês, japonês, espanhol... ah, sei lá, não lembro quantas línguas você fala, fora informática, que nas aulas você detona. E aí não estou certo?

O Zé me olhou com mais espanto ainda, com aquele olhar de quem não acreditava que eu não tinha a resposta, pois para ele era óbvio demais e para mim, um mistério. Ele pediu para sentar-me ao lado dele que iria me contar uma de suas histórias, me disse que não era uma história só dele, mas de diversas pessoas como ele. Sentei e falei, pode começar amigo.

Bom Joakim, eu percebi agora o que está acontecendo aqui, você realmente vê com o coração (na época não entendi), mas a verdade é bem simples, olhe bem para mim, eu simplesmente não trabalho, porque as pessoas não querem contratar alguém de cadeira de rodas. Nesse momento eu que fiquei espantado, afinal o que as pernas tinham a ver com os braços, via as pessoas por onde passava durante o trabalho, o dia inteiro sentadas, às vezes em frente a um micro outras em frente um aparelho de telefone, alguns poderiam muito bem estar de cadeira de rodas, pois eu só via a cabeça deles atrás do balcão!

Meu amigo continuou falando e disse que por causa disso, não o deixaram frequentar a escola onde morava e não havia outras escolas próximas, mesmo se houvesse ele não tinha como se locomover, porque na época nem cadeira de rodas possuía, sua mãe o levava nos braços. Emprego nem pensar, não que não houvesse procurado, procuraram e muito, as rodas da cadeira ficaram carecas na época e nada. Contou como não havia guias baixas, rampas, nem orelhões baixos para usar, e como teve um problema nos rins, por causa de beber pouca água, afinal banheiro público era outro problema, não havia elevadores em muitos locais, nem ônibus com local apropriado, cinema teatro e outras coisas ele só ia, porque havia uma turma de amigos que o carregava na entrada, mas que isso o humilhava, não porque o carregavam, mas porque para a sociedade parecia que ele não existia. E o pior, já havia tentado dar aulas particulares, mas no local onde morava, ninguém queria ter aulas com o “aleijadinho”, e ainda zombavam dele, estudar pra quê não vai conseguir nada mesmo, eles diziam. Disse-me que agora seus planos estavam indo bem e que eu poderia desfazer aquela cara de choro, pois ele tinha uma notícia maravilhosa para mim, havia passado na faculdade, bolsa integral, seu sonho agora era se tornar professor.

E aí não ficou alegre com a notícia? Claro, eu disse. Então porque essa cara de tão pensativo? Porque eu não havia notado tudo isso que você disse, da forma como me mostrou e na minha mente, vieram imagens de mais pessoas que devem ter vivido, ou vivem, discriminações como a sua. Há o meu vizinho Dilmar o “Má”, que possui um tipo de atrofia dos músculos e pega latinhas e papelão para revender, um outro Zé que mora um quarteirão abaixo de casa, joga damas como ninguém e reconhece todos os amigos, às vezes só pelo aperto de mão, mas principalmente pela voz, e nos enxerga com o coração, pois é cego. Também percebi que meu amigo de criança, que conversava com as mãos comigo, sempre que passava para pedir um prato de comida, talvez pedisse, porque trabalhar não conseguia.

Quando percebi, o Zé estava me abraçando e com minha cabeça no seu ombro, eu vi que ele também estava com olhos marejados e me disse algo que não esqueci jamais, ”Quero que você me prometa uma coisa, nunca trate ou deixe outros tratarem pessoas com algum tipo de deficiência como diferentes, quero que você continue pra sempre como é hoje, trate-os do mesmo jeito que você me tratou até agora, como amigos!”.

O Zé passou de ano, como já era esperado, e só o vi uma vez mais, quando foi na escola buscar seu histórico e disse que estava adorando a faculdade, estava trabalhando e me mostrou seu carro adaptado, e me disse mais uma coisa: Agora amigo eu tenho LIBERDADE!

Meu amigo Ivan, que se arrastava por todo o caminho quando eu ia para a escola, com o tempo, operações e fisioterapias, começou a andar, foi contratado depois pelo mercado da vizinhança, hoje em dia é um Hipermercado com um Shopping em anexo e o Ivan trabalhou lá até sua aposentadoria.

Eles olharam para ele e o viram como ele é, um ser humano!

Joakim Antonio

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No Brasil, 14,5% da população são pessoas portadoras de deficiência

Aproximadamente 9 milhões de pessoas portadoras de deficiência estão trabalhando. 

Os resultados do Censo 2000 mostram que, aproximadamente, 24,6 milhões de pessoas, ou 14,5% da população total, apresentaram algum tipo de incapacidade ou deficiência. São pessoas com ao menos alguma dificuldade de enxergar, ouvir, locomover-se ou alguma deficiência física ou mental. Estima-se que esse número, em 2009, tenha crescido para algo em torno de 26 milhões de pessoas.

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

2 comentários:

Alma Mateos Taborda disse...

Una historia muy bien contada y movilizante. Muy bueno. Un abrazo.

Joakim Antonio disse...

@ Alma

Gracias por tu visita, me alegro que te haya gustado. Abrazos!

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